Schnitzel e bife à milanesa: Um relato sobre o congresso da Associação Internacional de Educação Médica 2019
Publicado por: Camila Delmondes
09 de setembro de 2019

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Não são poucos os brasileiros que ao visitarem a bela cidade de Viena se perguntam qual seria a diferença entre o quase onipresente Wiener Schnitzel e o nosso igualmente popular bife à milanesa. A dificuldade em enxergar o que distinguiria dois pratos aparentemente tão semelhantes aguça a curiosidade do comensal, que procura nos detalhes de um de outro a resposta para esta saborosa questão.

Na última semana de agosto de 2019 ocorreu em Viena o congresso anual da AMEE, originalmente a associação europeia de educação médica, mas que atualmente refere-se a si como “uma associação internacional para a educação médica”. Denominação que faz jus à diversidade observada no encontro, cuja maior delegação entre os mais de 4.000 participantes não era a dos EUA ou Reino Unido, mas sim de um país de fora do eixo tradicional da ciência, a Tailândia. Com 93 representantes, a delegação brasileira era a 12ª maior do evento, e a 6ª externa ao eixo América do Norte/Europa. Assim como no primeiro encontro com um Wiener Schnitzel, a primeira participação em um congresso desta magnitude dedicado exclusivamente à educação médica suscita um misto de surpresa e curiosidade ante a constatação de que conhecemos há tanto tempo pode ser apresentado de forma diferente.

Uma destas diferenças, perceptível em várias partes do programa é a forte vinculação entre a discussão sobre os diversos aspectos da educação médica com as discussões sobre as demandas dos sistemas de saúde, e mais especificamente, ao perfil profissional ideal para o médico cuja atuação entrará na segunda metade do século XXI. No entanto, devido à velocidade das transformações nestes sistemas de saúde, mesmo a identificação das competências essenciais para a formação destes profissionais tem se tornado um grande desafio, exigindo a busca por outros referenciais para a organização de currículos e de estratégias de ensino. Embora diferenças regionais naturalmente influenciem esta discussão, foi possível identificar nas discussões, sobre currículo em particular, quais seriam os eixos em torno dos quais a formação médica deve ser estruturada à luz das melhores evidencias científicas. A surpresa positiva é que, como tentarei resumir, a essência destes eixos são contempladas no perfil do egresso recentemente revisado por nosso Núcleo Docente Estruturante (NDE).

As grandes áreas de competência já contempladas em nosso currículo como conhecimento médico (aqui entendido como o conteúdo básico e clínico), assistência à saúde individual e coletiva (que inclui as habilidades técnicas e as ferramentas de análise necessárias para assistência a pacientes e comunidades) e ética (que na literatura do ensino médico é incluída em um domínio chamado “profissionalismo”) seguem como pilares da arquitetura curricular das principais instituições de ensino em todo o mundo. Outras áreas como a capacidade de se comunicar (com pacientes e com outros profissionais da saúde), e a de manter-se informado no universo de informações disponíveis nas diferentes mídias (inclusive naquelas que ainda não foram inventadas!) também fazem parte do rol de competências essenciais da formação médica, o que leva algumas instituições da Ásia a proporem a inclusão de código de programação em seus currículos. Aqui cabe destacar que embora atividades ligadas a estas competências sejam contempladas em grande parte dos currículos de medicina no Brasil, o reconhecimento de sua importância, assim como o refinamento nas formas como elas são abordadas talvez seja uma área onde haja bastante espaço para avançar. Por fim, diversas discussões abordaram temas ligados a uma área de competência ainda em fase de delimitação, citada na literatura como health system sciences, e que inclui aspectos como a gestão de sistemas de saúde (públicos ou privados), tomada de decisões baseadas em custo-efetividade, manuseio e interpretação de grandes conjuntos de dados (por exemplo, epidemiológicos, de prontuários eletrônicos ou ainda genômicos, no contexto da medicina personalizada), entre outros. Embora muitos destes aspectos já estejam presentes em nosso currículo, sua formulação como uma competência essencial para o enfrentamento dos desafios gerados pelas transformações da realidade em que atuamos é uma perspectiva interessante e que talvez possa contribuir para sua incorporação cada vez mais efetiva à formação de nossos alunos [1].

Um aspecto bastante interessante desta leitura ampliada do ensino baseado em competências é o reconhecimento das mesmas não como objetivos terminais da formação, mas sim como ferramentas para que a escola médica seja capaz de formar profissionais aptos a tomar as decisões corretas lançando mão do maior volume de conhecimento disponível, e de acordo com a melhor interpretação possível do contexto (clínico-epidemiológico, sócio-econômicos e humano) que os cerca; e tendo sempre em seu horizonte a segurança do paciente, como um conceito que  inclui, mas não se restringe, ao conhecimento médico sobre o tratamento de cada doença.

Além destas discussões conceituais, o congresso também apresentou uma quantidade imensa de resultados de projetos de pesquisa em ensino, que variam desde ensaios randomizados até relatos de experiência. Este imenso volume de resultados não apenas inspira qualquer um interessado em educação superior, mas também ilustra o quanto o Ensino pode ser também uma área de expressão de nossa criatividade e de produção científica e acadêmica de qualidade, com aplicação muitas vezes imediata para alunos e professores. Dentre estes resultados mais concretos, chamo atenção para discussões sobre estratégias para otimizar a transmissão de conhecimento, e valorizar o encontro professor/aluno como um momento para discussão e reflexão sobre a tomada de decisões diante de problemas reais; e para a importância da formação continuada do corpo docente (no jargão da educação, “desenvolvimento docente”) para que avanços efetivos possam ser promovidos com a participação de todos.

Da mesma forma como a rodela de limão siciliano, que ao dar um toque especial ao Wiener Schnitzel nos inspira a criar em nossa próxima degustação de um bom bife à milanesa, a exposição durante um congresso internacional de educação médica a formulações e propostas tão diferentes sobre assuntos presentes há anos em nosso dia a dia nos deixa com a impressão de que pequenas mudanças na perspectiva da qual enxergamos alguns dos “por quê(s)?” e “como(s)?” de nosso trabalho podem sim ampliar nosso repertório de percepções e soluções, e quiçá tornar-nos professores mais capazes de transformar uma geração de jovens tão diferente do que fomos nos médicos que atenderão às demandas ainda por vir das próximas gerações.

[1] Embora utilizando um jargão distinto, a descrição área de competência intitulada “Gestão em Saúde” nas Diretrizes Curriculares Nacionais de 2014 aborda muitos destes itens.

 


Erich de Paula é coordenador do Núcleo de Avaliação e Pesquisa em Educação Médica da FCM e participou do AMEE com o apoio do FAEPEX e da FCM.



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