Ciência da vida após a morte é tema de palestra realizada na FCM
Publicado por: Karen Menegheti de Moraes
26 de setembro de 2023

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O livro “Ciência da vida após a morte” foi lançado na última quinta-feira (21), no Salão Nobre da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Na ocasião, houve palestra com o psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, um dos autores da publicação, que também é assinada pela psiquiatra Marianna Costa e pelo filósofo Humberto Schubert Coelho, integrantes do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A obra foi originalmente publicada em inglês pela Springer.

O livro investiga as evidências científicas sobre uma das questões mais desafiadoras e presentes da experiência humana, em diferentes culturas e religiões: a sobrevivência da consciência após a morte. A publicação tem um como alvo tanto o público acadêmico, mas não necessariamente especialista, quanto o público geral com um certo grau de instrução. Segundo Alexander, o livro tem tido impacto positivo em revistas na área de filosofia, ciência da religião e psicologia, assim como na mídia.

“O objetivo é apresentar e discutir a melhor evidência disponível sobre o que seria a ciência da vida após a morte. As pessoas no ambiente acadêmico, religioso e no público em geral desconhecem que existe pelo menos 150 anos de investigação científica deste tema, com muitas das mentes mais brilhantes neste período”, declarou Alexander, lembrando que o assunto sempre foi discutido em diferentes tradições religiosas e filosóficas.

Alexander fala sobre psicografias de Chico Xavier. Foto: Karen Moraes/ARPI

“A gente conseguiu se dedicar por um ano para compilar o que existe de dados para investigar cientificamente o tema, o que existe de estudo e quais são as hipóteses possíveis para lidar com esses fenômenos. Para isso, fizemos revisão sistemática na Web of Science, base bastante restritiva em termos de rigor, onde encontramos cerca de 2 mil artigos sobre esse tipo de fenômeno sugestivo de uma mente experiência fora do corpo, quase-morte, mediúnicas etc. O mais interessante é que o fator de impacto desses artigos era semelhante ao de áreas mais mainstream”, afirmou o autor.

Para o autor, muitas certezas sobre espiritualidade repetidas no meio acadêmico se baseiam meramente em opiniões. “Há vários estudos com levantamentos de que a população mundial continua acreditando numa ideia de vida após a morte. Mesmo na Europa Ocidental e lugares mais secularizados e com maior desenvolvimento socioeconômico e educacional, apenas 40% acreditam que quando as pessoas morrem é o fim”. Também rompendo com esse senso, em países como França, Rússia e Brasil pessoas com maior escolaridade tendem a acreditar mais em vida após a morte.

Alexander acrescenta que alguns preconceitos ideológicos, filosóficos e históricos bloqueiam a análise, como a ideia do fisicalismo ou materialismo, ou seja, de que tudo que existe é composto por partículas e forças físicas e materiais e, por consequência, qualquer dimensão transcendente seria necessariamente ilusão, distorção ou alucinação. “A possibilidade da existência de um aspecto da realidade que vá além do mundo material pode apontar para uma realidade ampliada, o que não tem a ver com o sobrenatural. A matéria escura, por exemplo, representa 85% da existente no universo, mas ninguém tem menor ideia do que ela seja. Talvez a realidade seja mais expandida e, além das partículas e de forças físicas, possa existir a consciência. A mente pode ser um outro aspecto irredutível da natureza”, disse.

Paulo Dalgalarrondo, docente do Departamento de Psiquiatria da FCM. Foto: Karen Moraes/ARPi

Um outro ponto refutado é o de que a neurociência teria comprovado que o cérebro gera a consciência. Segundo Alexander, os fundadores da Psicologia Científica e da Neurociência conheciam muito bem esses fenômenos, e, apesar disso, não tinham visões fisicalistas da mente. William James, que foi filósofo e psicólogo e considerado um dos pais da Psicologia Científica moderna, por mais de 30 anos estudou esses fenômenos, concluindo que eles não podem ser explicados apenas pela atividade cerebral. “A ideia do fisicalismo é um princípio metafísico, uma visão global de mundo e que não é comprovado – até porque uma prova científica sobre isso deve ser impossível – e também a própria noção de que o cérebro seria causa última da consciência. É algo que está longe de ser demonstrado”, afirmou.

Outro aspecto abordado no trabalho é a experiência de quase-morte (EQM), quando um indivíduo em situação de alto risco de perder a vida, como uma parada cardíaca, refere que “sai” do corpo, conseguindo observar as coisas ao redor, tendo uma percepção mais ampliada da realidade, uma análise da sua própria vida e uma ponderação ética e moral sobre ela. “Ele nunca esteve tão lúcido quanto naquele momento. Tem uma certeza muito forte e que impacta sua vida ao longo do tempo. Há uma série de casos bem documentados, em que essas supostas aparições ou alucinações trazem informações verídicas específicas, às quais a pessoa não tinha acesso”, declarou Alexander. Ele lembra que a EQM difere do delírio, uma vez que neste há confusão, desorientação e paranoia. Além disso, quando o paciente se recupera ele não se recorda e não verifica um impacto tão grande, se referindo a uma “viagem”. 

O autor também negou a EQM como reflexo cultural e religioso, embora as crenças influenciem um pouco o conteúdo das vivências. Alexander orientou doutorado em que foram investigados 205 casos EQM em todo o Brasil. Entre os achados, na maioria das vezes a EQM contraria a crença prévia que a pessoa tinha. A pessoa modifica a crença a partir da experiência, e não o contrário. Outros estudos avaliam a pontuação, pelo paciente, de uma memória da EQM, um fato importante de sua vida e uma fantasia criada. A EQM pontua mais na escala de força da memória do que as outras em termos de característica de realidade e separação de fantasia. Outro estudo acompanhou por 20 anos pessoas que tiveram EQM, e as memórias associadas à experiência pontuaram mais que as habituais.

Ao final da sessão, Alexander autografou livros aos participantes. Foto: Karen Moraes/ARPI

Mais um aspecto trazido pelo livro é a existência dos médiuns, que aparecem em todas as culturas e, de um modo geral, conduz à mesma conclusão. “O que nos interessa são as pessoas que alegam ter a capacidade de obter informações de pessoas que já faleceram, porque você consegue verificar essa informação da sobrevivência da consciência, manifestada pela continuidade do caráter da memória”, afirmou Alexander. Entre as contestações à sua veracidade, estão: transtorno psicótico ou dissociativo, personificação do inconsciente ou transe inconsciente, em que personifica outra pessoa. Também pode haver fraude deliberada, na qual o suposto médium faz afirmações genéricas sobre a pessoa falecida e o enlutado acredita naquilo porque está sofrendo.

Alexander cita o mestrado em Teoria e História Literária, na Unicamp, de Alexandre Caroli Rocha, que avaliou obras psicografadas de Chico Xavier. Aos 22 anos, o médium de pouca instrução formal publicou o livro “Parnaso de além-túmulo” com poemas atribuídos a dezenas de autores brasileiros, como Castro Alves e Casimiro de Abreu. “Analisando o estilo literário de cada um dos poetas atribuídos às psicografias, fica muito claro que eles mantêm através da escrita o repertório cultural que se esperaria deles; a capacidade literária de expressar naquele estilo; e, ainda, modificações que se esperaria ao longo do tempo”, declarou. Já no Doutorado, Alexandre analisou a obra de Humberto de Campos psicografada por Xavier. “Interessante observar que há inúmeras referências, muito sutis, trazendo uma intertextualidade com a obra em vida. Alguém teria que conhecer muito de Campos para ser capaz de fazer essas inter-relações”, afirmou o professor da UFJF.  

Outra linha de evidência é a que apresenta crianças, em início de fala, com relatos de suposta da vida passada. Esse é o caso de Purnima Ekanayake, do Sri Lanka. Aos três anos, ela ficou sabendo de alguém que morreu atropelado. A menina teve, então, uma reação muito intensa. Pouco depois, ao ver na televisão o templo Kelaniya, ela relatou ter vivido ali, onde fabricava incenso. Ao investigarem as informações no local, encontraram um familiar do fazedor de incenso ao qual a menina se referia. O homem, de fato, vendia o material de bicicleta quando foi atropelado, apresentando fraturas na costela. Purnima tinha marca de nascença na mesma região do corpo. “Isso não é um caso isolado. Publicamos uma revisão recente com mais de 2.500 casos de memórias verificadas. Há centenas de casos de correspondência de marca de nascença com alegada lesão fatal ligada à personalidade anterior”, declarou Alexander.  

Por fim, Alexander enumera as hipóteses que mais subsistem: a chamada percepção extra sensorial, com capacidade telepática, clarividente etc.; e a própria sobrevivência da consciência. “O que chama atenção é uma triangulação: há múltiplas evidências de pesquisadores e fenômenos em várias partes do mundo convergindo para a explicação mais simples da sobrevivência da consciência. Inúmeros fenômenos que se encaixam mais fácil dentro dessa hipótese não descartam as outras; mas essa nos parece a explicação mais simples e natural. Inclusive, pessoas que publicaram revisões amplas das evidências disponíveis nos últimos 150 anos concluem nessa direção”, finalizou.

Palestra ocorreu no Salão Nobre da FCM. Foto: Karen Moraes/ARPI

Perguntas dos participantes

“Existe uma tendência de as pessoas religiosas acharem a experiência de quase-morte anormal e não a relatarem?”

“Como psiquiatra a gente vê muito isso. As pessoas têm essas vivências, mas ficam com receio de falar e suprimem, em conflito, seja por uma visão materialista (não pode ser verdade) ou religiosa (o dogma diz que não é assim). A gente acabou de publicar um levantamento com mais de mil pessoas da população, mostrando que só 6% dos brasileiros nunca tiveram uma experiência espiritual mais profunda, desde a união com Deus até visão de pessoas que já faleceram; e quase metade tiveram pelo menos 10 vezes experiências do tipo. 50% referiram já tem tido experiência de estar em contato com alguém que já morreu. Na EQM, especificamente, o paciente fica com medo, questionando sua sanidade. Muitas vezes, a equipe médica o desqualifica e não fornece acolhimento.  É comum também a pessoa mudar a sua visão religiosa a partir disso: a pessoa que acreditava que não existe vida após a morte passa acreditar, ou a buscar outras religiões que se encaixem melhor com essa vivência”, disse Alexander.

Outro questionamento foi a respeito da correlação entre cultura e crença na reencarnação.

“Dos 2.500 casos documentados academicamente, encontramos isso em todas as culturas do mundo. Porém, a maioria dos relatos são da Ásia, em culturas reencarnacionistas. A gente ainda não sabe se é porque realmente acontece mais nesses grupos ou porque se permite que venham a público nesse tipo de cultura”, respondeu o professor.

“Em busca recente, encontrei 17.000 estudos por ‘espirituality’ na base Medline - quando se tinha 500 até o ano 2000. Mesmo assim, existe uma resistência muito grande dentro da ciência para que esse paradigma avance. Como você tem vivenciado isso?”

“Tem 30 anos praticamente que a gente trabalha com pesquisa na área. Hoje em dia isso é muito mais elaborado. As crenças religiosas e práticas continuam sendo frequentes, ao contrário do que se imaginava; e impactam a saúde, de modo geral, positivamente. Isso já está estabelecido, inclusive, os clínicos devem abordar essa prioridade dos pacientes. Acho que a gente está numa nova etapa. O que me surpreende é a receptividade positiva ao tema na academia e mesmo no ambiente religioso diversificado. A gente vê muito nas redes os haters, mas num ambiente minimamente intelectual de discussão não estou tendo nenhum problema a respeito”, declarou o docente. 

Outra pergunta foi a respeito da discussão da pseudociência, levantada recentemente na mídia, questionando campos como o da psicanálise. “Como os estudos de ciência da vida após a morte podem contribuir para um novo método científico?”

“Em nosso grupo sabemos que não existe um único método científico. Somos adeptos da racionalidade da empiria das evidências na abordagem científica. Não acho que essa questão seja abordável só cientificamente, mas também filosoficamente e experiencialmente. Eu entendo a ciência como uma busca coletiva racional baseada em observações empíricas. Nós temos uma preocupação muito grande em entender o espírito da ciência, aplicando-o nos mais diversos objetos. A gente precisa aprimorar cada vez mais a abordagem científica para lidar com o fenômeno. Temos evidências científicas para ser discutidas como quaisquer outras. Essa prova definitiva não existe mais, seja na Física, Química, Biologia, etc.”, afirmou Alexander.

Por fim, o professor Paulo Dalgalarrondo questionou se a EQM indica mais no sentido da espiritualidade, como o contato com almas, ou de um estado como um sonho, “produto” da mente do sonhador.  

“Eu tendo a enxergar a EQM sem negar a interferência de fatores biológicos, cerebrais, culturais e psicanalíticos. A questão sempre é se isso dá conta de abarcar o fenômeno. A minha impressão é que não. A EQM se encaixa no conjunto de fenômenos que, ao longo da história, sugerem que também é algum tipo de contato ou manifestação de um aspecto transcendente do próprio ser humano e que deve ser investigado cientificamente. Praticamente todos os autores que estudaram empiricamente a fundo grandes estudos de EQM dão conta de que uma explicação puramente psicofísica é insuficiente”, finalizou o palestrante.



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